“As sirenes tocaram a noite inteira sem parar. Todavia, pior que as sirenes, foi o navio que afundava, enquanto cabeças de crianças explodiam.
Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e dos excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, pra lá dos acampamentos paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho.”
Após ler o primeiro paragrafo do livro decido parar e ligar a TV.
Tinha acabado de deixar meu filho mais velho na casa da mãe, sem saber quando veria ele de novo, pois estaríamos todos em quarentena.
Ao ligar a teve e ver imagens de fila de caminhões em ruas vazias da Itália o repórter dizia :
“Um porta-voz do Exército confirmou nesta quinta-feira (19) que 15 caminhões e 50 soldados foram mobilizados para transferir corpos para províncias vizinhas. Mais cedo, autoridades de Bergamo haviam pedido ajuda com cremações por causa da sobrecarga em seu crematório."
Troco de canal, está passando entrevista com o Bolsonaro mesmo depois de 18 mortes no Brasil confirma que o ministro da saúde está exagerando com a prevenção e fica puto do ministro dizer que o SUS vai colapsar.
Troco mais uma vez de canal, está passando BBB, olho para fora de casa e vejo que a quarentena também se divide em xepa e vip.
Decido desligar a TV e voltar a ler.
Nessa distopia do século 21, São Paulo tem que lutar contra um governo ditatorial, uma superpopulação e um calor infernal. Falta água, comida e não existe quase mais árvores. Souza é professor de história e aposentado pelo regime.
Souza olha para fora de casa e sai para entender o que está acontecendo. Decide sair da alienação e interagir com outros. Aí está a degradação do personagem e a degradação do país.
Fico na dúvida se estou escrevendo sobre o livro, olho a data de lançamento 1982, olho minha identidade 1982.
Nesse regime, depois de anos de exploração desenfreada da Amazônia, o Brasil tem a oitava maravilha do mundo, o próprio deserto do Saara. Potencializando o Turismo no Brasil.
Começo a ficar ainda mais na dúvida se estou lendo ou assistindo TV.
Me pego olhando para as ruas vazias e ressoa em mim essa ironia de Loyola Brandão.
“senti que deveria ter atravessado o hall e ficado ao lado do professor, se todos tivéssemos feito isso algo poderia ter mudado, os gestos decisivos faltaram em grande parte da nossa história.”
Agora vou tentar dormir. Boa Noite.