Provavelmente por que nos inspiram. E quando falamos de heróis, a imagem que geralmente vêm à nossa cabeça é de personagens idealizados, cheios de boas qualidades, praticamente perfeitos. E que quando apresentam algum defeito, serve como elemento para impulsionar a narrativa de sua história.
O escritor e professor Joseph Campbell soube como ninguém analisar o arquétipo do herói em suas obras, em especial “O Heroi de Mil Faces”, que se tornou livro-chave para todo e qualquer roteirista de cinema e TV, dramaturgo ou escritor literário. Campbell dissecou obras clássicas, em especial da mitologia grega, identificando os elementos que compõem a jornada do herói, que é base de criação para muitos autores. Exemplos não faltam nas obras clássicas (como Prometeu, Teseu e Ulisses), na literatura fantástica recente (Harry Potter, vários personagens de “O Senhor dos Anéis” e até mesmo em “As Crônicas de Gelo e Fogo”, que inspirou a série de TV “Game of Thrones”), entre outros, isso só para citar o universo da fantasia.
Estes personagens heroicos são tipos idealizados, frutos da imaginação criativa de seus escritores. Na vida real, não é bem assim. Sabemos que os seres humanos são imperfeitos, dotados de qualidades boas e ruins. E o mais incrível é que isso pode fascinar até mais do que um “personagem de capa e espada” pois pessoas que habitaram a Terra em que pisamos estão mais próximas do que somos. Estes personagens-da-vida-real são encontrados nas biografias, gênero que tem sido um dos mais apreciados do mercado editorial nos últimos anos. Com todas suas virtudes e fraquezas, pessoas biografadas (sejam elas famosas ou não) podem nos inspirar em proporções inesperadas, e até mudar nosso jeito de ver o mundo e seguirmos com mais afinco em nossas trajetórias. Podem até ser nossos heróis e nos dar grandes lições de vida. E por que não?
Você acha que tem um comportamento explosivo e isso prejudica a sua prosperidade? Em “Steve Jobs”, de Walter Isaacson, você poderá ler o quanto o cérebro por trás da Apple também tinha esse comportamento, mas isso não o impediu de ser lembrado por seu carisma e também por ser um dos maiores e mais bem-sucedidos gênios do mundo da tecnologia e do empreendedorismo. Você tem ambições mas é pobre, sofre discriminações e acha que isso será um obstáculo em sua carreira? Leia “Oprah – Uma Biografia”, de Kitty Kelley e confira a história de superação da hoje bilionária apresentadora que enfrentou preconceitos de raça, classe e gênero até chegar ao posto de mulher mais influente dos Estados Unidos nos anos 90. Você tem grandes ideias mas acha que a vida não é justa com você e que há pessoas ao redor que podem puxar seu tapete? Em “Minhas Invenções”, autobiografia de Nikola Tesla, você poderá ver o quanto este célebre inventor croata autor de mais de 700 invenções (incluindo a corrente alternada, a lâmpada fluorescente e a transmissão via rádio) foi sacaneado por Thomas Edison, que era seu chefe e patenteou inventos de Tesla e de outros especialistas de sua equipe, levando os créditos por isso.
A lista de histórias inspiradoras é grande, e só para citar algumas de superação não podemos esquecer das muitas biografias sobre o astrofísico Stephen Hawking, sobre o presidente Abraham Lincoln, e os diários de adolescentes que vivenciaram terríveis conflitos bélicos, como Anne Frank e Zlata Filipovic (na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Civil Iugoslava, respectivamente). Como exemplo brasileiro, podemos citar “Maldito – A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão”, de André Barcinski e Ivan Finotti, em que o leitor muitas vezes termina o livro surpreso com a carreira quixotesca do cineasta, ao mesmo tempo em que pode ficar indignado com o fato dele ser ridicularizado em sua terra natal, mas idolatrado no exterior.
Mas nem tudo precisa ser trágico. Você pode se inspirar com biografias de pessoas que ergueram grandes impérios e que hoje possuem um trabalho presente no dia-a-dia das pessoas, elas queiram ou não, como Bill Gates e Walt Disney.
Os artistas também proporcionam leituras saborosas sobre suas vidas. Mas vale lembrar que as biografias não se atém apenas à carreira e ao legado de uma pessoa, adentrando também em sua vida pessoal e suas origens, podendo revelar detalhes cruciais que explicam alguma característica do biografado ou de sua obra.
Algumas podem ser surpreendentes. Em sua autobiografia, “My Bloody Roots”, Max Cavalera, fundador da banda Sepultura, revela que foi batizado no Vaticano quando pequeno (e isso que no início de sua carreira, a banda era considerada satânica). Outro expoente da música pesada, Al Jourgensen, lider da banda Ministry, foi internado em um manicômio na adolescência (e essa é só uma passagem tranquila de sua biografia “Ministry: The Lost Gospels According to Al Jourgensen”, inédita no Brasil, cheia de detalhes chocantes que só uma vida regada a substâncias ilegais pode proporcionar). Mas vamos para a seara do pop. Em “Le Freak – Autobiografia do Maior Hitmaker da Música Pop”, Nile Rogers (outra farmácia ambulante, criador do grupo disco Chic e produtor inúmeros sucessos nos últimos 40 anos) deixa o leitor embasbacado com sua vida em uma família disfuncional na adolescência, com direito a episódios dignos dos noticiários policiais dos mais bizarros.
Como se vê nos dois últimos citados, eles não têm vergonha de esconder seu passado, talvez como quem quisesse dizer “não façam o que eu fiz”. Pena que Roberto Carlos não pense do mesmo jeito e proibiu “Roberto Carlos Em Detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo das livrarias. E isso que ele está longe, muito longe de ter sido um colecionador de episódios absurdos como Al Jourgensen e Nile Rogers.
Outra característica positiva das biografias é quando estas vão muito além dos biografados, explorando todo um cenário em que estavam inseridos, habitado por outras pessoas conhecidas, como em “Planet Hemp – Mantenha o Respeito”, de Pedro de Luna. Além da biografia de uma banda, o livro conta a história da efervescência de um cenário artístico no Rio de Janeiro durante os anos 90. O autor já havia feito algo parecido no livro “Brodagens – Gilber T e as histórias do rap e do rock carioca”, sobre um músico muito querido e talentoso, mas que por alguns revezes da vida não obteve sucesso e nem projeção fora de seu núcleo, mas que estava rodeado de nomes ilustres da cena musical da capital carioca e de Niterói.
Independente de todas as discordâncias ou contradições encontradas em uma biografia, é possível gostar dos biografados, ou de seu legado, ou de ambos. Admirar tudo o que Steve Jobs deixou mesmo sabendo que ele demitia funcionários dentro do elevador da Apple e que negligenciou a gravidez de sua namorada, quando esta esperava seu primeiro filho; gostar da música de Al Jourgensen mesmo ele sendo um delinquente senil que passou uma noite de Natal assistindo ao filme barra pesada “Scarface” com a filha de 7 anos; ou apreciar a obra de Paulo Leminski (retratado em “O Bandido que Sabia Latim”, de Toninho Vaz) independente de seu comportamento autodestrutivo não muito ortodoxo para um pai de família.
Lendo tantas biografias, vemos que há pessoas que passaram por situações tão complicadas ou até piores que as nossas. E ainda assim perseveraram. Por estes e por outros motivos, nos sentimos mais próximos destes heróis que habitaram nosso mundo. Pois estiveram aqui, são humanos como nós, que nos deixam admirados com suas qualidades e mesmo com seus defeitos. Por isso, nos inspiram.
Rodrigo Juste Duarte é jornalista há 20 anos. Atuou como repórter de cultura, fotógrafo, professor e assessor de imprensa com ênfase em cinema, tendo pós-graduação na sétima arte.