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Pecado, expiação e poesia no pântano do poder

Pecado, expiação e poesia no pântano do poder
Sandoval Matheus
mar. 25 - 3 min de leitura
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– Mas suponha que não exista nada para encontrar.
– Sempre existe alguma coisa – o chefe disse.
– Talvez não sobre o juiz – eu disse.
– O homem é concebido em pecado e nascido na corrupção, e ele passa do fedor da morte para o cheiro fétido da mortalha. Sempre existe alguma coisa – ele disse.

***

Esse diálogo de poucas linhas talvez resuma tudo o que você precisa saber antes de começar a ler o romance político “Todos os homens do rei”, de Robert Penn Warren, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1946. O “chefe” é Willie Stark, antes um advogado ingênuo e honesto de um grotão americano, que aceitava até mesmo galinhas como pagamento por seus serviços ao socorrer os miseráveis explorados da região. Um homem que se fez sozinho, e que ascende na política até se tornar governador, ao mesmo tempo em que seu idealismo caipira vai dando lugar a um pragmatismo amoral, disposto a quase tudo – chantagear, subornar, ameaçar, corromper, pouco importa – para arrancar do poder alguma justiça para a população.

No diálogo, ele está ordenando que Jack Burden, seu braço direito e assessor de imprensa cínico, investigue o juiz Samuel Irwin, conhecido por sua retidão de caráter, mas que está atrapalhando os planos de Stark. “Sempre existe alguma coisa”, disse o Chefe.

É uma verdade sobre o juiz Irwin, é uma verdade sobre quaisquer dos personagens de “Todos os homens do rei” e – por que não dizer de uma vez? – é uma verdade sobre a vida.

Tanto que Willie Stark, o personagem, é baseado em um político real, Huey Long, que governou o estado da Louisiana de 1928 a 1932 pelo Partido Democrata.

“Todos os homens do rei” nasceu como uma peça de teatro em versos, que Warren escreveu e reescreveu tantas e tantas vezes, por anos, até virar um romance. O que foi bom para o personagem Jack Burden, que deixou de ter apenas uma aparição rápida na dramaturgia para ser alçado à posição de narrador e um dos protagonistas da história.

É do passado em versos que vem a construção e o estilo da narrativa do livro, que muitas vezes fica à beira da prosa poética. Um lirismo que contrasta com as ações traiçoeiras dos personagens, o que ajuda a aumentar o incômodo e, paradoxalmente, o prazer do texto.

É um romance sobre política, sobre guerras institucionais e sobre a selva do poder. E é também um livro sobre o lodaçal escuro de nossas vísceras, sobre até onde é possível torcer a moral para arrancar o Bem do Mal a qualquer preço. Tem a ver com pecado e expiação.

É ainda um livro sobre redenção. A redenção de um personagem específico, Jack Burden, quando, num final plácido e comovente, ele finalmente decide romper seu casulo de acomodação ética.

E isso não é nenhum spoiler. Está dado no livro logo de cara, na epígrafe, que Warren tirou de “A Divina Comédia”: “O homem não está tão perdido que o amor eterno não possa recuperar, enquanto ainda restar um fio de esperança”.


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